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sexta-feira, 5 de março de 2010

Ser uma pessoa é diferente em cada cultura

A idéia de pessoa como um ser representado em si mesmo é contemporânea. Tem relação com as necessidades de nomear e atribuir sentido às diferentes categorias de sujeitos e essa idéia é também uma construção social. “Em uma mesma época essa idéia difere de uma sociedade para outra, podendo não existir sequer em algumas.” (MAUSS, 1974:209).
A palavra “pessoa” tem sua origem no grego (máscara, persona) e no latim (per sonare), passando por diferentes significações ao longo do tempo. Ainda tomando como referência o pensamento de Marcel Mauss, “de personagem ritual, persona, pessoa, passa a ser o sujeito-cidadão (Roma antiga), com nomen, praenomen e cognomen (posição na família) e status social. Após o início do Cristianismo, acrescentou-se à idéia de sujeito–cidadão a idéia de sujeito ético e moral, dotado de sentimentos e consciência de sua história de vida. Apenas de dois séculos para cá, a noção de pessoa passou a incorporar em si a categoria do eu, como uma “construção simbólica de significações que os homens fazem a respeito do sentido de si próprios” (BRANDÃO, 1987:27).
Desse modo, a idéia de pessoa transforma-se ao longo dos tempos dentro do contexto histórico–sócio–cultural no qual é produzida.
Para Geertz (2000:91),
“algumas vezes as noções que as pessoas têm sobre o que é ser uma pessoa podem parecer, do nosso ponto de vista, bastante estranhas. Uns acreditam que pessoas voam de um lado para o outro, durante a noite, na forma de vagalumes; ... outros crêem compartilhar seu destino com animais doppel–gänger, de modo que, quando o animal adoece ou morre, eles também adoecem ou morrem. (...) Para entender as concepções alheias é necessário que deixemos de lado nossa concepção e busquemos ver as experiências de outros com relação à sua própria concepção do ‘eu’.”

A idéia de pessoa autista sob o olhar da Medicina tradicional:
Em 1943, Leo Kanner, médico austríaco, observando algumas crianças com comportamento diferenciado da esquizofrenia, define-as como portadoras de “autismo infantil”, e sobre estas, diz que:
“...a desordem fundamental é a inaptidão das crianças a estabelecer relações normais com pessoas e a reagir às situações... os pais referem-se a eles como tendo sempre sido auto-suficientes, como em uma concha, agindo como se ninguém estivesse presente... dando a impressão de uma sabedoria silenciosa...” (In: DOMINIQUE, 2001:32)
Kanner ainda acrescentará o desejo de imutabilidade (nada deve mudar) e a patologia da linguagem, que quando está presente (estima-se que 50% dos autistas não adquirem linguagem) não possui, e por um longo tempo, valor de comunicação.
A partir de 1944, a Psicanálise, através de um de seus representantes, Bruno Bettelheim, iluminou outras perspectivas acerca do sujeito autista, pensando-lhe como uma espécie de “Fortaleza Vazia”. Outra psicanalista, Francis Tustin, concebeu o autista como “criança encapsulada”, que vivia em uma espécie de “buraco negro”. Outro ainda, Donald Meltzer, descreveu o autista como “pessoa em desmantelamento, onde o eu não possui mais coerência”. Outra psicanalista inglesa, Esther Bick, já concebia o autista como uma pessoa que se recobrisse com uma “segunda pele”.
Do ponto de vista Etnopsiquiatria, um de seus representantes, Tobie Nathan , observando famílias migrantes que possuem parentes autistas, estabelece que a cultura e o psiquismo “funcionam de maneira associativa”, e afirma que: “Não basta pertencer a uma espécie biológica, é preciso, além disso, ser membro de um grupo cultural, que... possua um modo específico de coesão... de troca com outros grupos”. Para Nathan, o autista vive numa espécie de “refúgio”, onde se o autista não chega a se apropriar do sistema de troca que é a língua, é porque, por razões que devem ser esclarecidas em cada caso, ele foi constrangido a garantir sozinho o isolamento de seu funcionamento psíquico, e não por uma comparação termo a termo com a organização cultural... ele assegura a preservação de sua identidade exclusivamente por seus próprios meios...).
Dominique (2001), psicóloga e psicoterapeuta, afirma que “essa visão do autismo... cujo o segredo ainda está por ser descoberto... se deve... a capacidade que elas têm de desconcertar e ao sentimento de ignorância que eles nos fazem sentir constantemente”.
Ao compararmos o que foi observado por Kanner – o autista como pessoa “em uma concha” – e o que foi dito no discurso já mencionado em outra postagem anterior do autista Jim Sinclair – “o autismo... não é... uma concha na qual ela (a pessoa autista) esteja presa. Não há nenhum indivíduo normal escondido por trás do autismo. O autismo é um jeito de ser”, percebemos já aqui uma falta de sintonia entre o discurso biomédico e o discurso do autista. As idéias anteriormente mencionadas a respeito da pessoa autista como “uma fortaleza vazia”, “uma criança encapsulada” num “buraco negro”, “uma pessoa em desmantelamento”, “uma pessoa que parece recobrir-se com uma segunda pele”, “uma pessoa em refúgio”...será que podemos considerá-las apenas como projeções pessoais do inconsciente de "outristas"?

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